Esses dias uma amiga brincou dizendo que tinha hora marcada na “terapia com GPT”. Na hora, dei risada (aquela que começa achando graça e termina no desespero).
Aí continuou me dando algumas justificativas, como: “O Chat não me julga” e “ele não me interrompe”. Eu, um pouco sem graça, mudei de assunto. Mas guardei o assunto num triplex de coisas que me chocam, dentro a minha cabeça.
Dias depois o assunto voltou a me perseguir no threads, e até em alguns grupos que frequento. Percebi que esse assunto me incomodava, e decidi procurar o motivo. Encontrei: se a gente passou a procurar por compreensão onde não há nem presença, o que isso diz sobre a forma que nos relacionamos e sobre o que esperamos dos nossos relacionamentos?
O meu problema não é o com o Chat ou qualquer outra IA. É sobre: como a nossa necessidade de compreensão (ser escutado), pode se tornar num vício de autocomiseração e reafirmação das nossas mazelas.
Queremos ouvir alguém (ou ninguém?) dizendo que nos entende, mesmo que seja uma máquina que só repete o que acha adequado, sem nenhuma preocupação real com a nossa sanidade.
Entre Samantha e Marisa Maiô
No filme Her (filme de 2014, por Spike Jonze), Theodore se apaixona por Samantha. Own que lindo! Né? Só que não!
Samantha é Her, uma inteligência artificial sem corpo (a vida real já conseguiu ser mais assustadora ando corpo aos robôs), com a voz doce e inteligente. Quando assisti, há alguns anos, eu odiei o filme. Hoje continuo incomodada com ele, mas de forma diferente, eu achava surreal na época, hoje vejo o quanto foi profético.
Her se passa num futuro onde a solidão parece ser uma realidade comum (nada distante do que vivemos agora). Theodore (interpretado por Joaquin Phoenix) é um homem introspectivo, recém-divorciado, que trabalha escrevendo cartas emocionais que ele assina por outros casais e familiares. (pois é, numa realidade cheia de tecnologia ele ganha dinheiro com a escrita afetiva). Ele é um ghostwriter dos sentimentos dos seus clientes.
Mesmo assim, ele não consegue se conectar de forma real com ninguém, e ao instalar um sistema operacional de inteligência artificial, a Samantha (com a voz da maravilhosa Scarlett Johansson), ele se apaixona. Afinal, ela tem tudo o que ele deseja: uma escuta apurada, senso de humor, curiosidade e uma personalidade calorosa que vai evoluindo conforme eles convivem. Ela nunca o ignora. Nunca o interrompe. Nunca impõe. É um amor que parece perfeito. Mas o que Theodore vive com Samantha não é amor. É alívio. Não é relação. É regulação emocional. Ele não se conecta com ela. Ele se esconde nela.
E isso é profundamente atual. Vivemos fugindo dos processos da vida. Pra quê escrever? Use o chat! Fazer terapia? Use o chat! Ler o livro? Transcreva o livro, coloque na IA e peça o resumo em tópicos.
O problema de manter uma “relação de amor” com uma IA é que pulamos os processos que nos tornam melhores (mas preferimos nos agarrar na falácia do ideal).
Sou 100% natural, tenho 22 anos, da roça mas não vou ganhar nenhuma curtida, por não ter silicone. O golpe tá aí.
Marisa Maiô não é perfeita — e é por isso que a gente amou
Criada pelo carioca Raony Phillips, vimos Marisa Maiô (a primeira apresentadora de programa de auditório feita por IA) uma versão de Nany People + Faustão + Silvio Santos nascer com um maiô, batom e um sotaque que mistura interior, coach e bairro classe média decadente. Marisa é muito mais do que uma caricatura: ela é uma paródia da nossa tentativa de performar perfeição. (além de rir da falsa perfeição que os jornalistas tentam nos passar há anos, Zelda Merda que nos perdoe).
Marisa viralizou porque escancara o esgotamento de uma geração que quer parecer funcional, perfeita e clean girl e entrega um teatro tão natural quanto a luz do dia. Embora ela seja feita por IA, ela carrega algo muito humano que faz com que a gente se reconheça com vergonha: as verdades humanas.
Se Samantha, em Her, representa o ideal gentil, Marisa é o oposto radical disso tudo.
Enquanto buscamos pela perfeição humana inalcançável, o sucesso persegue a imperfeição artificial.
Viramos especialistas em construir público-alvo, ajustar a foto de perfil de acordo com o arquétipo, montar uma bio que vende, criar nossos templates no canva… Tudo isso pensando em gerar impacto. E tudo bem, a estratégia tem seu lugar. Porém, se não tomarmos cuidado, aos poucos, deixaremos de viver para performar.
E o que isso nos mostra?
Que na era do parecer. Não podemos esquecer de ser.
Temos medo da vulnerabilidade e da imperfeição. De errar o tom, o batom. De amar errado e mudar de ideia.
Temos pavor do rosto sem filtro no ângulo errado, e da nossa vida não caber no feed. Mas esquecemos que o feed é só um instante bem enquadrado e não uma pessoa inteira.
Nosso maior medo? Sermos desmascarados pelos outros e por nós mesmos. Por isso preferimos conversar com prompts a encarar um silêncio desconfortável de alguém de verdade.
Num futuro cada vez artificial, ser de verdade ainda vale a pena?
Vale a pena dizer o que pensamos mesmo que frustre o outro?
Vale a pena escrever com a própria cabeça, mesmo que leve mais tempo que um parágrafo pronto da IA?
Vale a pena debruçar nos livros, enquanto poderia perguntar no chat e receber a resposta em 15 segundos?
Quando terceirizamos a escuta pra uma IA, a leitura pra um resumo, o pensamento pra um prompt, nossa educação pra um guru, o amor pra uma idealização… não tá ganhando tempo. Estamos perdendo a formação do nosso intelecto e do nosso caráter.
Então me responde você: se estamos cada vez mais sozinhos por querer tudo perfeito, nos outros e em nós, vale a pena delegar tudo… e terminar a vida burro e sem amor?
Viramos especialistas em parecer, e analfabetos em sentir a própria vida.
A vida que nos transformas é aquela imperfeita, que incomoda.
Que nasce na pergunta mal formulada, no texto que trava, na conversa que cansa, no silêncio que demora pra responder.
Viver de verdade exige presença. E presença não se delega.
O que nos ameaça não é usar IA (nem a Marisa Maiô, o Chat, comer açúcar ou o ovo).
É parar de usar o cérebro.
É esquecer de ouvir os nossos próprios instintos.
É, prompt após prompt, terceirizar a nossa existência — e desaprender o que mais nos torna humanos: ser gente.
Um abraço e até a próxima trama;
Samy.
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Esse texto me fez refletir sobre uma percepção que tive. Quando o Raony criou a Marisa Maiô, essa personagem foi recebida com a essência do humor que ele já aplicava em outros trabalhos, e deu tão certo que chegou a fazer uma publicidade pra MagaLu.
E como existem as “cópias”, eu também vi no TikTok outras pessoas tentando replicar essa mesma IA da Marisa, mas com roteiros diferentes, e assim como eu, li muitos comentários dizendo que não era a mesma coisa da Marisa original (criada pelo Raony). Isso comprova outro ponto que você defende: a inteligência artificial, sem uma mente brilhante por trás, vira qualquer uma. A originalidade de um bom roteiro (criado por um humano), sempre será o maior diferencial.
Não posso dizer “queria ter escrito este texto” porque se fosse eu escrevendo, ele não teria ficado tão bom assim.
Volta e meia falo, com palavras majs duras, exatamente o quanto o processo de usar a IA em tudo vai nos afastando da nossa própria essência, diminuindo nossa inteligência e principalmente, enxugando nossas capacidades humanas.
As pessoas preferem, sempre, o conforto do imediatismo ao invés de lidar com as dificuldades da construção de algo duradouro.
Obrigado por esse texto maravilhoso Samy.