Por que a pizza é sempre melhor no outro dia?
“Não se faz mais insira aqui qualquer coisa como antigamente”.
Se eu entrasse numa sala com trinta pessoas e pedisse para que todos que já ouviram alguma adaptação dessa frase se pintassem de azul, num segundo eu entraria na Vila dos Smurfs.
Embora essa seja uma expressão popular, só ao assistir recentemente ao filme "Meia-Noite em Paris", do diretor Woody Allen, entendi pela primeira vez a origem dessa ideia de que o passado era melhor do que o presente.
No filme, o protagonista Gil Pender é um escritor americano com dificuldades para terminar seu romance - tanto o literário quanto o noivado. No começo do filme, assim que ele chega a Paris, diz: “Paris é uma Festa”, fazendo alusão à obra de mesmo nome do grande escritor Ernest Hemingway. E o comentário recebe uma retrucada sarcástica: “Até que você pegue um trânsito e perca a festa”.
E assim, num único minuto de cena, vemos claramente um idealista sendo confrontado com a realidade por um membro da família de sua noiva. Essa é só uma amostra do conflito que vai acompanhar todo o desenvolvimento do filme.
Gil vive sendo perseguido pelo passado como quem corre contra a própria sombra num dia ensolarado. Ele nunca deixa que leiam o seu romance sobre uma loja de antiguidades, pois acredita que nunca será tão bom quanto Hemingway.
Vive uma vida de conveniência como roteirista de filmes que ele não gosta só pelo dinheiro (e esse é o seu único ponto de conexão com a sua noiva); sente o tempo todo que lhe falta algo, e este algo está no passado, onde ele vive mais plenamente em suas viagens - literais - no tempo que ocorrem toda "meia-noite, em Paris".
Mas existe um outro diálogo ainda mais significativo que escancara o sentimento de que “o passado é melhor do que o presente”.
Paul, o amigo de Liz (a noiva de Gil), após ouvir do escritor que para ele Paris nos anos 20 seria a “Época de Ouro”, retruca explicando:
“A nostalgia é uma negação; é a negação de um presente doloroso. E o nome desse tipo de pensamento é Época de Ouro - uma ideia errônea de que algum tempo do passado é melhor do que o que estamos vivendo hoje - é uma falha do imaginário romântico de pessoas que têm dificuldade para lidar com o presente”.
E mesmo que o personagem seja arrogante e sintamos vontade de discordar da frase por conta disso, ele conseguiu alugar um triplex na minha cabeça. Concluí que passar muito tempo sentindo “saudades do que a gente não viveu” ( citando o filósofo contemporâneo Neymar Jr) é um sinal de alerta que aponta que estamos fugindo do presente.
A memória se transforma com o que acreditamos recordar
O conceito da “Época de Ouro” não é um pensamento inventado só para o roteiro desse filme; ele tem origem num mecanismo de defesa do nosso cérebro.
Todos já experienciamos o truque de um fato parecer melhor numa lembrança do que realmente foi. Desde “sofrer bullying no colégio” ser esquecido e substituído pelas lembranças dos poucos amigos que fizemos; um divórcio terrível parecer um livramento uns três anos depois; ou até uma viagem cheia de choro de criança, doença e confusão, ao longo dos anos, se transformar em belas paisagens e fotos estranhas que provocam sorrisos e nos fazem até desejar marcar a próxima loucura, ops, viagem. Essa é a base do viés de nostalgia, ou retrospecto cor-de-rosa.
O retrospecto cor-de-rosa é um viés cognitivo que age como uma estratégia de adaptação, fazendo-nos lembrar do passado de forma mais positiva. Esse mecanismo beneficia a nossa saúde mental e emocional, criando resiliência. Esse é o lado positivo, mas também há um lado negativo, pois viver negando as aparências e disfarçando as evidências pode ser um grande tiro no pé.
Como escreveu Joan Didion, no livro "Noites Azuis":
“O tempo passa. A memória se desbota, a memória se transforma com o que acreditamos recordar”.
No filme, Gil Pender foge para o passado em toda brecha de tempo, porque não consegue viver o seu presente. Só quando ele entende que o passado é uma ilusão é que a traição de sua noiva, que estava acontecendo debaixo do seu nariz, finalmente lhe salta aos olhos.
Mas até chegarmos nesse ponto, ele teve que enfrentar um grande medo: o medo do presente.
Por que o presente nos provoca medo?
Para responder essa pergunta, pedi ajuda para a minha amiga Joan. Ainda no seu livro “Noites Azuis” ela apresenta um conceito que descreve a nossa relação com o presente:
“(...) existe um período um pouco antes e logo depois do solstício de verão em que os crepúsculos se tornam mais longos e azuis (...) Nas noites azuis temos a impressão de que o fim do dia jamais chegará”.
O presente é como o momento azul no fim do dia, que parece eterno enquanto estamos nele, mas que passa, assim como essa palavra passou; e o mais assustador é que é nessa fração de segundo que qualquer ação que fizermos terá alguma consequência no futuro. Pensando assim, buscar refúgio no passado me parece mesmo muito mais acolhedor. Contudo, apesar do medo, considero que encarar o presente ainda é a melhor forma de viver, já que o passado e o futuro são só fumaça.
Só depois que Gil encarou o presente, conseguiu aproveitar as oportunidades que estavam à sua frente e tomar decisões.
Ele terminou os dois romances (o noivado e o livro). Mudou-se para Paris e, como uma representação de que o agora é a única coisa que de fato podemos tocar, realizou o desejo de caminhar sob a chuva em Paris.
Isso me levou a concluir que só experienciando o presente podemos escrever um futuro que tenhamos mais prazer de viver do que qualquer lembrança que já tivemos. No fim das contas, era a infelicidade do presente que o obrigava a fantasiar sobre um passado que nunca existiu.
Mas… e a pizza amanhecida?
Bom, para finalizar o meu primeiro ensaio, quero agradecer pela sua atenção e torcer para que o “retrospecto cor-de-rosa” me faça o favor de te fazer lembrar do meu trabalho muito melhor do que ele realmente saiu.
E também quero confessar que me peguei pensando em alguns momentos se a pizza adormecida é realmente melhor ou se o meu cérebro me enganou durante toda a minha vida porque eu não quero ter que fazer o café da manhã no dia seguinte.
Eis os mistério.
Lendo enquanto como a pizza do dia anterior. Tanto o ensaio quanto a pizza estão maravilhosas. Parabéns!
Que texto perfeito Samy!
Não é a toa que “viver no passado” se chama de depressão, e “viver no futuro” se chama ansiedade.
Trago o exemplo das músicas. Já me peguei pensando inúmeras vezes como as músicas eram bem melhores, em letra e melodia. Mas a verdade é que eram mesmo, mas não por terem ficado no passado mas por terem se tornado legado. Elas podem estar vivas no nosso presente hoje construindo novas memórias.
Quantas coisas do nosso passado podem repetir hoje?
Se acreditamos ter tido uma infância feliz (deletamos o bullying e as palmadas), podemos ser mães e pais melhores.
Você alugou foi um condomínio inteiro na minha mente neste domingo.
Mas reforçou o que minha terapeuta me lembra toda quinta-feira: “atenção plena, viver o presente com todo saboreio que ele merece e precisa”.
A pergunta que podemos nos fazer é: Como esse passado que nos parece tal incrível pode se tornar nosso presente de alguma forma? Eu coloco um Bon Jovi no treino e ele vira épico rsrs.