Carta aberta ao texto engavetado
Querido texto engavetado;
Eu sei que você pode receber esta tentativa de diálogo com um pouco de mágoa, e que, à primeira vista, o “querido” no vocativo possa soar irônico, interpretado talvez com desprezo. No entanto, peço que esqueça por um momento a cólera de permanecer na gaveta, pois quero te recordar de algo mais importante.
Quando começamos o texto, éramos parceiros, lembra-se? Você me adorava e sempre mantinha um tom acolhedor, quase maternal, ao receber as minhas ideias, fossem boas ou ruins, sem jamais me julgar; por isso, confiei a você até as minhas rasuras mais terríveis.
Trabalhávamos juntos em prol de uma ideia, buscando as melhores palavras, incansáveis em nossas pesquisas para que a mensagem fosse clara, fiel ao mensageiro, e tocasse o coração do receptor. Foram muitas horas, dias curtos e noites longas, nas quais nutrimos uma forte amizade, que sobreviveu a intempestivas revisões. Por isso, me surpreendi com a sua reação ao conhecer seu destino.
Não pense que foi de bom grado que aceitei colocar você no papel de um texto engavetado. Enquanto nossa missão permanecia viva, eu acreditei em cada palavra que gravávamos, em cada ideia que eternizávamos, em cada diálogo que você e eu estabelecíamos nas margens da folha. Nunca tive a intenção de iludir-te com promessas de publicação; eu realmente te via alcançando o mundo, impresso em muitos países. No entanto, escrevi seu texto sob encomenda e nada podia fazer além de aceitar que seu destino não estava em minhas mãos.
Quando te aceitaram, acreditei que o futuro que imaginei para você se cumpriria. Disseram-me que você estava muito bem feito; ao saber, porém, que não seria publicado, doeu em mim a sentença, mas nada pude fazer além de destinar-te à gaveta. Sei que, por aí, você encontrou muitos amigos, alguns até mais rudimentares e incompletos, mas todos com boa vontade. Todos esses antigos textos já compreenderam o que meu ego de artista iniciante custou a aprender e que eu esqueci de incluir em nosso contrato:
o papel de todos os textos escritos não é ser divulgado, é tornar melhor o escritor.
Eu sei que pode soar egoísta, mas deixe-me explicar, pois acredito que você verá como sua vida foi completa, mesmo sem ser publicado.
Se eu não o tivesse usado, você teria sido apenas um papel sem função em minha vida. Uma página em branco, cheia de potenciais não realizados, repousando em um caderno esquecido e pensando, talvez, em como seria o seu futuro, quantas palavras te preencheriam, quantas histórias poderia contar. Hoje, no entanto, você descansa na gaveta com a certeza de ter cumprido seu papel: ajudar-me a me tornar uma escritora melhor
e acho que não há melhor fim do que vivermos de acordo com a nossa vocação.
Espero que esta carta te traga uma nova perspectiva e que possamos deixar nossa relação em bons termos. Saiba que nunca te esquecerei; carregarei para sempre comigo a experiência que vivemos juntos. Quanto a mim, sigo na missão de cumprir o meu papel, exercer minha vocação e continuar, com disciplina, escrevendo, independentemente do destino que se apresente aos meus textos.
Com carinho,
Samy
Emocionou-me 🥺
Que obra! 😍
Uma carta que também trouxe muita paz pro lado de cá